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terça-feira, 24 de abril de 2012

O Paraiso Perdido


"...os anjos caídos não eram, na verdade, demônios, mas arautos da liberdade. Nesse sentido, a rebelião dos anjos não passa por ser um pecado contra a ordem de Deus, mas sim um evento glorioso..."


"...E a queda do homem não é uma desgraça, mas sim uma oportunidade dele se exaltar..."





A idéia de existência de um paraíso, de onde um dia a raça humana foi expulsa é um arquétipo compartilhado praticamente por todos os povos da terra. Em todas as tradições dos povos antigos remanescem memórias desse lugar fantástico, onde o mal não existia, e a dor e o sofrimento eram experiências desconhecidas do ser humano.




Porém, o livro que tornou esse mito um best-seller entre as memórias arquetípicas da humanidade foi a Bíblia hebraica. Esse portentoso livro, que segundo a crença judaico-cristã, foi ditada pelo próprio Deus aos seus sacerdotes e profetas, ou que segundo os historiadores céticos, é uma compilação muito bem organizada de lendas e narrativas antigas, feita por uma ou duas gerações de rabinos judeus,é o primeiro livro a dar uma descrição pormenorizada desse lugar de delícias, onde Deus colocou a sua criatura mais bem elaborada para viver uma vida de eternos prazeres.



Literalmente, o Eden seria um lugar existente na terra mesmo, e bem real. Seria um jardim plantado lá pelas bandas do Oriente, talvez próximo da foz do rio Eufrates, segundo indicações da própria Bíblia, que diz que dele saia uma fonte que dava origem a quatro rios, sendo dois deles os nossos conhecidos Tigre e Eufrates, rios que banham a antiga terra chamada Mesopotâmea (hoje Iraque) e deságuam no Golfo Pérsico. Alguns arqueólogos até pretendem ter desenterrado o Éden nas escavações do sitio chamado Gobekli Tepe. A tese dos arqueólogos que desenterraram Goblekli Tepe é a de que a famosa expulsão do paraíso, narrada na Bíblia, foi talvez a destruição desse local, ocorrida em razão do Dilúvio, outra memória que também é conservada pela maioria dos povos da terra e também convenientemente adaptada e narrada na Bíblia judaica com fins claramente político-ideológicos.



De qualquer modo, a expulsão do casal humano do paraíso é um dos temas que mais aparecem nas narrativas religiosas e mitológicas da humanidade. Da Babilônia ao Império Asteca, todos os povos lembram que um dia o homem teve um contato direto com Deus e suas criaturas celestes, e que esse contato foi cortado violentamente em razão de uma “trairagem” cometida pelo homem, iludido que foi pelo arquiinimigo de Deus, o antigo arcanjo Satan, que brigou com Ele e se tornou seu grande opositor.



A história dessa guerra celeste, que opôs Deus e seus anjos contra as hostes reunidas por Satan, ou Satanás, não foi contada com pormenores na Bíblia. Ela apenas faz algumas parcas referências a esse conflito, dizendo que ele ocorreu e separou a população angélica em duas facções distintas, que se tornaram, de um lado, anjos do bem e do outro lado, anjos do mal.



Anjos e demônios passaram a ser os dois poderes disputantes das estruturas universais, com tudo que elas encerram. Quem desenvolveu esse tema com riquezas de detalhes e uma interpretação muito bem bolada do assunto foram os mestres que desenvolveram a grande tradição da Cabala. É nesta antiga tradição que encontramos os reais significados das narrações bíblicas e topamos com a verdadeira história dessa guerra travadas nos céus entre as hostes angélicas e seus oponentes demoníacos, pela posse da alma do homem e do próprio universo enquanto obra de criação. É uma verdadeira epopéia, semelhante á Iliada e a Odisséia, dos gregos, ou a Mahabharata, a grande saga dos heróis arianos, que narra a guerra dos clãs pelo controle do país dos brâmames.



Nesse conflito repousa a estrutura universal, oscilante entre o bem e o mal, entre a luz e as trevas, entre a matéria e o espírito. Talvez a mais antiga (e perfeita) concepção dessa dialética seja aquela pensada por Zoroastro (ou Zaratustra, o grande sábio persa) há cerca de quatro mil anos atrás quando intuiu que o mundo era um resultado do embate entre o deus da luz (Ormuz) e o deus das trevas (Arimã). Nessa concepção se inspiraram todas as demais, de forma que, ao que parece, foi Zaratustra quem inventou (ou descobriu) a briga entre Deus e Satã pelo controle do mundo, e de quebra inventou o paraíso. (Não por acaso no Golfo Pérsico).



Cá entre nós, uma das mais belas narrativas a respeito desse tema foi feita pelo poeta inglês John Milton, em 1677. No seu longo poema, escrito á moda clássica, ele narra o confronto entre Deus e Satanás, no qual um terço dos anjos são expulsos do céu e trancafiados, como prisioneiros, em um campo de concentração, que nesse caso, é o inferno. Ali, liderados por Satã, secundado pelo seu lugar-tenente Lúcifer, os danados tramam sua vingança. Como não poderiam atacar diretamente o céu devido ao poder de Deus e do seu Filho (O Cristo) e das Hostes Celestiais, comandadas pelo arcanjo Miguel, os anjos caídos apelam para outra estratégia.



Assim, ao invés de enfrentar abertamente as forças celestes, eles resolvem desencaminhar a criação humana, o “xodó” do Criador, feita à sua imagem e semelhança. “Se não podemos vencê-lo," deve ter pensado Satanás, “vamos pelo menos aborrecê-lo”, Assim, o chefe dos demônios empreende uma longa viagem do inferno à terra e se apresenta a Eva, na forma de uma serpente e a seduz, induzindo-a a comer o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. Eva cai na lábia do demônio travestido de réptil, come o fruto e depois leva seu marido Adão a comê-lo também, completando assim o ato de desobediência para com o seu Criador, que os havia proibido de comer do fruto daquela árvore.



Deus se vinga dos pérfidos desencaminhadores transformando-os em asquerosos répteis durante mil anos. Nascem desse ato os lagartos, os dragões, as salamandras, os sáurios, os crocodilos e jacarés, os calangos e toda classe de animais que se arrastam pela terra sobre seus próprios ventres. E quanto ao homem, tolo desencaminhado, embora sem maldade, cabe-lhe a culpa "in vigilando" por não ter vigiado eficazmente a sua mulher e por ter caído em sua lábia. Expulso desse lugar de delícias que era o Eden, terá que trabalhar arduamente para ganhar a vida; e quanto á mulher, terá que suportar as dores do parto para ter seus filhos.



Quem quiser entender o Paraíso Perdido de Milton terá que fazer uma pequena incursão pela história da Inglaterra na época em que essa monumental obra literária foi escrita.
 
Estávamos em fins do século XVII (1677), época mais intensa dos conflitos dinásticos e religiosos que mudaram a face da civilização ocidental. A Inglaterra estava vivendo o rescaldo da guerra entre a realeza e o Parlamento, conflito esse que acabou custando a vida do rei Carlos I, decapitado por ordem do Parlamento, chefiado pelo pastor conservador-fundamentalista Olivério Crommwel.



A Inglaterra teria, nesse episódio, um breve período de experiência republicana, mas a tradição da monarquia é um arquétipo tão entranhado na psique do povo inglês, que a simples eliminação do monarca não aplacou o conflito e ele logo voltaria a sacudir a nação inglesa. Em conseqüência, a monarquia também logo seria reconstituída.
 
Esse foi o pano de fundo para a magistral adaptação que John Milton fez do mito bíblico para figurar um momento da história que estava sendo vivido pelo mundo ocidental justamente naquela época. Milton era católico e apoiava a revolução puritana. Chegou mesmo a trabalhar no ministério de Crommwel.

 
A Europa toda vivia um momento de intensa ebulição espiritual, com as doutrinas reformistas que ganhavam terreno em todas as classes sociais.Com as guerras religiosas começou o êxodo dos puritanos (os protestantes mais ferrenhos) para a América, que era pintada na mídia da época como sendo a nova terra da promessa.
 
Uma surda guerra intelectual era traçada nos meios de comunicação pela posse da alma humana. De um lado os portadores da promessa de um novo mundo para aqueles que se convertessem às novas idéias propostas pelos reformistas (e pelos iluministas que já nessa época iniciavam a divulgação dos seus postulados) e de outro os partidários da antiga ordem (o catolicismo e o anglicismo reformado), que contra atacavam com a Inquisição e as ameaças de uma eterna condenação para aqueles que se afastassem da verdadeira fé. Era, portanto, um mundo de conflito, tanto na política quanto na religião.



Por outro lado, o fim do século XVII é a época em que mais intensamente as chamadas doutrinas ocultas seduziram o espírito dos intelectuais. É dessa época o fenômeno Rosa-Cruz, genial farsa intelectual perpetrada por filósofos ocultistas (na maioria alquimistas) para dar ao mundo a ilusão de que eles eram os depositários de um segredo capaz de levar a humanidade de novo ao paraíso perdido. É desse tempo a maioria das obras literárias que versam sobre a utopia política, social ou meramente filosófica. É nesse tempo, finalmente, que nascem as associações, como a Real Sociedade, antecessora da maçonaria, cujo objetivo era a realização (espiritual e física) desse sonho do homem, que era a volta ao paraíso.



Na obra de Milton há tudo isso. Desde a exaltação, pura e simples, da concepção católica do pecado original (a idéia de que o homem já nasce pecador em função do pecado de seus pais originais Adão e Eva e por isso precisa praticar na obra de expiação para poder ser salvo), até a idéia central do Cristianismo, que é a salvação da humanidade através do sacrifício de Jesus Cristo.
 
Mas há também uma curiosa concessão às teses heréticas, muito a gosto dos opositores da Igreja na época, para quem a rebelião de Satanás (ou Lúcifer, segundo a Cabala, já que nessa tradição ambos são uma mesma entidade), representa um grito de liberdade de um grupo oprimido contra um Senhor cruel e opressor. Pois era assim que algumas seitas, consideradas heréticas, viam o Deus bíblico. E nessa concepção, Jesus também era um líder que lutou contra essa opressão. Por isso o verdadeiro Cristianismo passava ao largo tanto do catolicismo quanto do protestantismo. Dessas concepções nasceram doutrinas originais como as dos mórmons, dos amishs, das igrejas reformistas que se afastaram do protestantismo histórico. Para eles, tanto a Igreja Católica quanto os reformistas protestantes nada mais faziam do que defender uma doutrina que havia contribuído para escravizar o corpo e o espírito dos homens.



Dessa forma, os anjos caídos não eram, na verdade, demônios, mas arautos da liberdade. Nesse sentido, a rebelião dos anjos não passa por ser um pecado contra a ordem de Deus, mas sim um evento glorioso. E a queda do homem não é uma desgraça, mas sim uma oportunidade dele se exaltar. Essa idéia, Milton exprime num dos mais inspirados versos do seu grande poema, quando o Arcanjo Gabriel, no momento da expulsão, diz a Adão: “Ajunta ao teu conhecimento ações louváveis, ajunta a fé, a virtude e a paciência, a temperança, ajunta o amor, chamado no futuro caridade, alma de tudo o mais; então não te lastimarás de deixar este Paraíso, pois que possuirás em ti mesmo um paraíso muito mais feliz.” E ele termina o poema, não com a tristeza de um casal desterrado e privado da sua felicidade, mas com a romântica imagem de um par que tem o mundo todo à sua frente para encontrar a Seu Porvir : “ O mundo todo estava diante deles, para escolherem, lá,um lugar para o seu descanso. A Providência era o seu guia.De mãos dadas, com passos incertos e lentos, tomaram, através do Éden, o seu caminho solitário.”



E foi assim que a história do homem livre começou...


Fonte AQUI

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